Pandemia e cambio civilizatório

Por Enrique Martínez Larrechea

A pandemia COVID 2019 parece implicar uma mudança cultural em uma escala quase planetária.

No quadro de uma sociedade virtual hiper comunicada, circulam imagens de feições apocalípticas, em meio a condições de quarentena e confinamento de centenas de milhões de pessoas.

A primeira consequência disso são mudanças abruptas nos padrões de interação pessoal. Em um nível mais geral, a queda acentuada nas atividades de transporte turístico e de passageiros e um golpe severo para as economias global e local.

A resposta, com base nas diretrizes da sociedade da informação, foi uma forte reconversão de muitos serviços públicos e privados em uma chave digital (educação, treinamento, varejo, vários serviços).

Juntos, esses traços parecem configurar um novo padrão de sociabilidade, talvez uma mudança civilizacional. Especula-se se mudanças geopolíticas cruciais ocorrerão ou se apenas as tendências pré-existentes serão acentuadas como resultado da emergência sanitária.

São múltiplos os debates em jogo: qual é ou poderia ter sido a melhor gestão pública da crise da saúde; as implicações sociais da resposta à quarentena forçada, que afeta a todos e, em particular, os setores mais vulneráveis ​​socialmente; o valor e os limites da responsabilidade pessoal na gestão da pandemia; o significado disso para a economia capitalista e como será o dia seguinte …

Ao rever a história do século XX e, em particular, a história das relações internacionais, nota-se com preocupação que a terrível “gripe espanhola” de 1918-1920 por vezes carece até de uma nota de rodapé em algumas obras de referência. Passou pelos corpos e as almas, como a pior pandemia da modernidade (em termos de número de vítimas), mas parece não ter sido suficientemente importante para merecer seu registo.

O mesmo acontecerá com a pandemia covid-19? Lembraremos dela só unilateralmente, como fata da história econômica, como a causa de uma tremenda depressão no PIB mundial? Acontecimento apenas da educação, ou da aviação civil, como as áreas culturais e industriais que sofreram o impacto?

O COVID-19 é um tipo de coronavírus que parece ter se originado em um mercado de animais exóticos em Wuhan, China, onde o vírus teria sido comunicado entre espécies animais mantidas em condições de superlotação (morcegos, pangolins) e destes para humanos .

Alguns quiseram buscar a origem da prática do comércio de animais selvagens e exóticos na China contemporânea em certas medidas tomadas em decorrência da fome causada pela chamada Revolução Cultural, uma grave crise alimentar que contribuiu para a mudança da China na direção do capitalismo. .

Nessa hipótese, a expansão e aprofundamento do capitalismo chinês, com novas demandas de consumo, mantinha e exacerbava o comércio de espécies silvestres, mal mantidas em cativeiro.

Não posso me pronunciar sobre o ponto, mas, caso fosse certo, as origens das condições socioeconômicas da pandemia teriam que ser fixadas de alguma forma em cataclismos sociais e políticos anteriores, e esse seria um aporte conceitual que permite prever o advento quase certo de futuras epidemias e pandemias.

Além de antecedentes históricos, as características do vírus responsável pela pandemia, aparentemente óbvias e triviais para nós, seus contemporâneos ameaçados, são relevantes e merecem uma revisão:

-A tremenda capacidade de contágio e mutação do vírus, que parece tornar-se mais letal na ausência de obstáculos.

-Um longo período de incubação assintomático, que facilita o contágio silencioso.

– Um certo caráter “biopolítico”: o vírus não é apenas um fenômeno natural, uma cadeia de material genético e RNA: constitui, além de um risco para a saúde das pessoas, também um tremenda ameaça para à saúde dos sistemas de saúde, acionando, assim, uma série de relevantes mecanismos biopolíticos.

Seu aparecimento inicial descontrolado vitimou pessoas, e sistemas de saúde, principalmente em países com maior proporção de pessoas com mais de 65 anos e / ou que não sustentaram investimentos no sistema de saúde e / ou não tomaram medidas rápidas para contenção.

É, portanto, um vírus com uma consequência política muito marcante e totalmente nova, diferente de outras pandemias. A “gripe espanhola” não tinha esse carácter porque o Estado-providência – quaisquer que fossem as diferenças entre os países, por vezes muito marcantes – ainda não tinha sido construído.

Foi Michel Foucault, em Conferência na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1974, que cunhou nas ciências sociais (depois de Kjellén, que o utilizou em outro sentido, organicista) o conceito de biopolítica:

“O controle da sociedade sobre os indivíduos não se efetua apenas por meio da consciência ou da ideologia, mas também no corpo e com o corpo. Para a sociedade capitalista, é o biopolítico que importa, sobretudo o biológico, o somático, o físico. O corpo é uma entidade biopolítica, a medicina é uma estratégia biopolítica ”.

Hoje, os mecanismos biopolíticos parecem carregar uma dimensão de dominação, mas também uma certa potencialidade emancipatória.

As pandemias não são uma novidade no ensino superior. De acordo com o IESALC-UNESCO (2020), a Universidade de Cambridge teve que fechar suas portas em 1665, em decorrência de um surto de peste. Isaac Newton teve que voltar para casa e foi a partir da quarentena que se inspirou a formular sua teoria da gravitação universal. Cambridge fechou suas portas novamente este ano como a grande maioria das instituições de ensino superior

A emergência de saúde hoje afeta 23,4 milhões de estudantes do ensino superior e 1,4 milhão de professores na América Latina e no Caribe.

Os alunos do ensino médio prestes a ingressar, e os alunos que ingressam neste ano no ensino superior são os mais vulneráveis. O confinamento afetará o equilíbrio socioemocional, somando-se às vulnerabilidades anteriores, socioeconômicas, de gênero e saúde. (IESALC, UNESCO, 2020, 12 e seguintes).

Nos países onde o ensino superior é financiado pelos estudantes, os custos e encargos financeiros não foram suspensos nem reduzidos. No caso do Reino Unido, ao finalizar o primeiro semestre havia um pedido de reembolso parcial da mensalidade para 260 mil alunos do Reino Unido. Faziam-se cálculos de perda de pelo menos um terço do valor total

A pandemia implicou para a universidades uma adaptação a novas fórmulas de ensino. Mesmo assim, existem problemas de baixa conectividade nos lares em certas residências e regiões (apenas 17% na África ou 45% na América Latina tem conectividade).

No entanto, temos uma taxa muito alta de linhas de telefonia móvel, o que pode ser também considerado um recurso, embora prevaleçam ainda as formas tradicionais de educação, uma espécie de presença mediada pela tecnologia.

A mobilidade estudantil internacional foi fortemente afetada (5,3 milhões em 2017).

Os desafios e aprendizados para a gestão universitária serão imensos.

Para além do catálogo das vicissitudes da pandemia COVID-19, parece claro que, como qualquer situação limite, a emergência construiu espaços de auto-refleicao  compartilhada, de novas reflexões sobre o sentido da vida, a finitude e o valor dos nossos fundamentos culturais.

E constitui, especialmente para as instituições de ensino superior e para os praticantes da produção simbólica, da arte e da cultura, uma oportunidade notável para repensar profundamente o mundo construído nas primeiras duas décadas do século 21, visando o desenvolvimento de um novo humanismo não antropocêntrico, que posa dar conta do futuro.

Referencias web:
https://www.medionegro.org/pdf-sopa-de-wuhan/
http://www.iesalc.unesco.org/category/covid19-2/
http://www.iesalc.unesco.org/wp-content/uploads/2020/05/COVID-19-ES-130520.pdf
https://www.argentina.gob.ar/argentina-futura
https://www.argentina.gob.ar/sites/default/files/el_futuro_despues_del_covid-19_0.pdf

*Enrique Martínez Larrechea: doutor em Relações Internacionais e pesquisador do SNI do Uruguai. Ex-Diretor Nacional de Educação daquele país em duas ocasiões tem participado de diversas edições do CIGU. Atualmente é membro do Conselho Académico da Fundação Instituto Universitário Sudamericano -IUSUR. www.iusur.edu.uy – iusur@iusur.edu.uy

Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a visão do INPEAU